A Distinta Vida de Nietzsche e Schopenhauer
POR Rosane Albertassi
Existem pelo menos duas maneiras de abordar a relação entre música e vontade. A mais comum é aquela que Nietzsche interpreta em sua primeira obra "O Nascimento da Tragédia", obra esta que demonstra ainda a grande influência que Arthur Schopenhauer exercia sobre Nietzsche.
A partir de um certo momento Nietzsche começou a divergir em alguns pontos com Schopenhauer, pelo qual foi muito influenciado em sua juventude como mencionamos acima. A partir das divergências entre Nietzsche e Schopenhauer, nosso objetivo é marcar uma diferença fundamental entre suas estéticas, tendo com ponto central o acesso direto à Vontade que a Arte Musical teria em ambas.
Para Nietzsche, a arte é dotada de uma capacidade especial, que ficou conhecida como "Coisa em Si" e para Schopenhauer era identificado como "Vontade". A música seria então uma arte privilegiada diante das demais modalidades artísticas; mas também privilegiada diante da própria ciência à medida que, tanto o jovem Nietzsche quanto para Schopenhauer, a música é a única via de acesso à Verdade do Mundo, ou seja, a única linguagem capaz de comunicar o em si do mundo.
Estaria configurada assim o que o próprio Nietzsche chamou de "metafísica do artista".
A relação entre música e vontade em Schopenhauer se dá por via direta, enquanto para Nietzsche esta relação nunca é direta ou imediata, em vez disso ela é simbólica.
Deste modo, ao aprofundarmos nosso entendimento sobre o caráter mediador do simbolismo em Nietzsche, podemos ver o profundo distanciamento entre os dois filósofos, o que por fim nos levaria, obrigatoriamente a rever o estatuto metafísico do pensamento do jovem Nietzsche delineando, o viés de uma possível transição da "metafísica do artista" (propriamente schopenhaueriana) em direção ao germe de uma "psicologia da arte" (notadamente nietzscheana).
Em sua obra principal, O mundo como vontade e representação, Schopenhauer, mantendo a distinção kantiana entre fenômeno e coisa em si, nos apresenta um mundo sob dois aspectos:
- como fenômeno, o mundo é para ele apenas aparência: representação que obedece ao princípio de razão suficiente;
- como coisa em si, porém, o mundo é pura verdade, uma força cega, sem razão e caótica, a qual nosso pensamento não pode acessar. O homem, como parte do mundo, é concebido como produto da coisa em si, ele é quem é movido pela vontade, pelo impulso e objetivação da vontade, que existe dentro de nós, segundo Schopenhauer, nosso pensamento para racional não nos permite qualquer acesso a coisa em si que seria nossa livre vontade, ela se encontra fora do domínio do "princípio da razão". Muito embora suas manifestações fenomênicas sejam submetidas a este princípio. Isto é possível apenas porque a própria razão é produto da vontade e, ainda que tal produto se encontre no interior da esfera do conhecimento, os mecanismos de produção permanecem, à luz da razão, uma completa incógnita.
No entanto, uma arte em especial para Schopenhauer, a música. Nela, mais do que em qualquer outra manifestação artística, se faz possível o acesso ao cerne do mundo; não mais por intermédio das idéias, mas de modo imediato. "Porque a música é uma reprodução e uma objetivação tão imediata de toda a vontade como o são as idéias". Isto porque "Ela nos dá sua essência sem qualquer acessório, e, por consequência, sem qualquer motivo", por isso, para Schopenhauer a música é um exercício metafísico inconsciente no qual o espírito não sabe que faz filosofia.
Embora Nietzsche afirme que a música não é a aparência da vontade, e sim o inverso, poderíamos nos perguntar se em seu livro O Nascimento da Tragédia não há uma transposição onde Dionísio assume o lugar da vontade schopenhaueriana. Seria o caso de uma apropriação terminológica, onde Nietzsche diz à Dionísio para não dizer a vontade, ao passo que diz vontade para não se referir àquilo que ele chama de Fatos Universais.
Essa transposição seria possível porque de fato há uma relação íntima entre a vontade de Schopenhauer e o deus Dionísio de Nietzsche, afinal, para este último, a essência da música é o próprio deus grego.
Paralelamente, em Shchopenhauer, a música é objetivação da vontade. Dionísio e vontade se encontram de maneira bastante relevante aqui, pois ambos são instâncias exteriores à cena, se encontram sempre em outro plano e não se manifestam senão através de uma materialização na arte musical. Sendo assim, Dionísio e vontade são transcendentes, são realidades propriamente metafísicas, que existem para além de toda aparência. Deste modo, Nietzsche, tal como Schopenhauer, permanecerão preso a um pensamento metafísico; muito embora, ao avaliarmos o papel que a música assume em cada autor, verificamos por fim que tais metafísicas se constituem de modo totalmente diferente.
Em Schopenhauer, a música é focalizada como um instrumento de contemplação da vontade porque ela é, ao mesmo tempo, a materialização da vontade (tal como um código pelo qual a vontade se manifesta), mas também é um anestésico, que nos faz ir além das idéias, a música é uma explicação perfeita para os conceitos do mundo. Para Schopenhauer mesmo se o mundo não existisse, ainda assim poderia haver a música.
Em Nietzsche, porém a música é focalizada em seu aspecto produtivo, como elemento fundamental para a realização da tragédia. Deste modo, é na obra de arte dionisíaca, que de certa forma liberta a vontade inconsciente dos humanos.
Por esta razão, dirá Nietzsche: "a melodia incessantemente geradora lança à sua volta centelhas de imagens". Ou ainda, é na força da música que se encontra a mais alta manifestação da tragédia, é saber interpretar o mito com nova e mais profunda significação; "Esse mito moribundo é agora capturado pelo gênio recém-nascido da música dionisíaca, e em suas mãos floresce mais uma vez, em cores como jamais apresentara, com um aroma que excita o pressentimento nostálgico de um mundo metafísico".
Percebemos este caráter predominantemente produtivo da música não apenas ao longo da obra, mas também a partir, inclusive, do seu título, onde se lê: O nascimento da tragédia a partir do espírito da música.
Notamos ainda que estes diferentes papéis assumidos pela música se correspondem também com diferentes sentidos que a tragédia encontra nos dois filósofos. Deste modo, delineamos duas perspectivas:
por um lado a de Nietzsche, que vê na tragédia a expressão de uma alegria perfeitamente compatível com o caráter produtivo da música nietzscheana; e por outro a perspectiva de Schopenhauer, que vê na tragédia apenas a "renúncia à vontade de viver", o "caminho da resignação" também compatível com o caráter contemplativo que encontramos em sua música.
Por isso, somos levados a considerar as palavras de Charles Andler: "Nietzsche tentou ser um interprete rigoroso e um adversário leal, mas ele nunca foi servo do pensamento schopenhaueriano".
Concluímos, que apesar de Nietzsche ter a princípio Schopenhauer como seu mestre e dele ter aprendido muito, ambos tinham visões diferentes sobre algumas teorias, como por exemplo na arte onde Schopenhauer via a música como a verdade interna do mundo, para ele na música não existe repetição de idéias das coisas do mundo mas se ouve a linguagem imediata e universal da coisa em si.
Portanto, que ainda que se manifeste em O Nascimento da Tragédia a mesma dicotomia metafísica de Schopenhauer (a mesma separação entre a coisa em si e fenômeno), a filosofia do jovem Nietzsche não compartilha em momento algum com a solução schopenhaueriana, pois a música em Nietzsche não é capaz de acessar a verdade interna do mundo. Dito de outro modo, embora Dionísio seja para a música nietzscheana o que a vontade de Schopenhauer também é para a arte dos tons, a música em Nietzsche se concentra em seu caráter produtivo, o que de modo algum garante o conhecimento da instância originária da qual esta mesma arte partiu. A música, em vez disso, exprime a vontade tal como se exprime um objeto, tal como se constitui um objeto que emana de si próprio, isto porque a música, como já foi dito, não é a aparência da vontade, e sim é a vontade a aparência da música. Vontade aqui significando não mais o caos originário (como em Schopenhauer), mas as sensações de prazer e desprazer que acompanham todas as representações.
Vemos, portanto, que a sutil distinção entre relação simbólica e relação direta somente pode ser compreendida a partir desta, já não tão sutil diferença entre o caráter contemplativo e o caráter produtivo da música - onde até a própria vontade passa a ser um produto da arte musical. O que por fim nos leva a encontrar, no pensamento metafísico do jovem Nietzsche, o viés de uma possível transição, localizando este primeiro Nietzsche em algum ponto entre Nietzsche e Schopenhauer.
Bibliografia:
Schopenhauer, Paerga e Paraliponema, cap. XI parag. 227
Schopenhauer, Jair Barbosa
Nietzsche, Nelson Boeira
O Pessimismo e suas Vontades, José Thomaz Brum